sexta-feira, 31 de março de 2017

O Brasil redescobre o samba jazz de Eliane Elias

Eliane Elias (Foto: Divulgação)Eliane Elias (Foto: Divulgação)
Na próxima semana, chega ao mercado brasileiro o disco Dance of Time, o 25.o da carreira solo da pianista Eliane Elias. Morando nos Estados Unidos desde 1981, Eliane Elias é uma esplêndida representante do jazz brasileiro no mundo, mesmo que o Brasil não saiba disso. Seu disco Made in Brazil ganhou o Grammy de Melhor Álbum de Latin Jazz, na premiação de 2016. E muita gente se perguntava: mas quem é Eliane Elias?

Criança prodígio, Eliane Elias foi estrela dos programas infantis, no finial dos anos sessenta, no rádio e na televisão, em São Paulo. Filha de uma pianista clássica, começou a estudar música aos sete anos de idade. Com dez anos se apaixonou pelo jazz. Nessa idade, já era capaz de transcrever e executar no piano os solos mais complicados de Bill Evans, Art Tatum ou Bud Powell.

Vendo o célere desenvolvimento musical da menina, sua mãe decidiu que ela não deveria ir para um conservatório tradicional. Aos 13 anos, Eliane Elias ingressou no Centro Livre de Aprendizado de Música - CLAM, o conservatório alternativo do Zimbo Trio. Lá, seu mestre foi o pianista Amilton Godoy, o líder do grupo, da o melhor professor de jazz em atividade no Brasil.

Eliane Elias conta que sua vida de adolescente estava toda voltada para a música. “Eu não ia à praia, nem saía para dançar. Eu só queria fazer música”, relata. Com isso, ela completou o programa do curso em dois anos. Amilton Godoy logo a convidou para integrar o corpo docente da escola. Com 15 anos, Eliane Elias já dava aulas de teoria musical, piano e improviso nos cursos de jazz da CLAM.

E como tudo parecia acontecer com Eliane Elias de maneira muito precoce, aos 17 anos ela passa a integrar a banda que acompanha Vinícius de Moraes e Toquinho em suas excursões pelo Brasil e pela América Latina. Há um curioso vídeo do Fantástico com Toquinho e Vinícius, de 1979, em que vemos Eliane Elias ao piano, dirigindo o grupo, aos 19 anos.

A paixão pelo jazz leva Eliane Elias a mudar-se para Nova York a fim completar sua formação na prestigiosa Juilliard School of Music. Com apenas um ano na cidade é convidada para fazer parte do quinteto Steps Ahead, um grupo importante naquele momento, com seu jazz de vanguarda, na linha do fusion. Sua presença injeta novo vigor à banda. O primeiro álbum dessa nova formação, o Steps Ahead (1983), é considerado o melhor disco do grupo.

A carreira solo de Eliane Elias começa em 1984, com o álbum Amanda, realizado em colaboração com seu então marido, o trompetista Randy Brecker. O título é uma homenagem à filha recém nascida do casal. O disco, no entanto, não teve muita repercussão. Somente quando assina com o selo Blue Note e lança o álbum So Far, So Close (1989) é que o trabalho de Eliane Elias começa a ser conhecido no meio jazzístico internacional.

O reconhecimento vem no ano seguinte, com o disco Eliane Elias Plays Jobim (Blue Note, 1990). Nesse álbum ela resgata suas raízes, interpretando o songbook de Tom Jobim, em clave de jazz, mas com todo o balanço brasileiro. Seus trabalhos seguintes para o selo Blue Note são marcados pelas mistura de samba e jazz, com um repertório em que os dois gêneros se complementam.

Em 1998, Eliane Elias retoma a interpretação da obra de Tom Jobim, dessa vez como cantora. O álbum Eliane Elias Sings Jobim (Blue Note) é o primeiro disco vocal de Eliane Elias. Só danço o samba é uma das músicas interpretadas por ela em seu segundo songbook de Jobim.

A partir daí, foram muitos discos, vários prêmios e três indicações para o Grammy até o álbum Made in Brazil, que lhe deu, finalmente a estatueta. Foi a primeira vez que Eliane Elias retornou aos estúdios brasileiros, desde que vive nos Estados Unidos. Ela queria gravar com músicos locais e que o clima de brasilidade transparecesse na obra. E tudo isso está na faixa No Tabuleiro da Baiana, de Ary Barroso.

Eliane Elias voltou ao Brasil para gravar, também, seu novo disco Dance of Time. Ela convidou para participar do álbum as pessoas que foram importantes em sua vida, desde o início de sua carreira. Estão os músicos brasileiros Toquinho e João Bosco e os americanos Randy Brecker, Mark Manieri e Marc Johnson.

O convidado mais especial de Eliane Elias nesse disco é seu mestre e mentor Amilton Godoy. Eles fazem o duo de piano na composição de Eliane Elias An Up Dawn. O álbum foi lançado nos Estados Unidos na sexta feira passada (24/03) e já está disponível nas plataformas digitais. Assim que podemos ter uma prévia dele também com as faixas O Pato e Sambou, sambou.

E para conhecermos mais do trabalho de Eliane Elias, no vídeo a seguir temos sua vertente mais jazzística junto com o grupo Steps Ahead. Eles se reuniram novamente no ano passado para uma turnê pelo mundo. Aqui vemos a apresentação no Festival Jazzaldia, no dia 24 de julho de 2016, em San Sebastian, no País Basco espanhol. O grupo tem Mike Mainieri, no vibrafone; Eliane Elias, no piano; Donny McCaslin, no sax tenor; Marc Johnson, no baixo; e Billy Kilson, na bateria. O tema que apresentam é The Time is Now mas antes temos Eliane Elias, no piano solo, com uma leitura muito particular de Asa Branca, de Luiz Gonzaga.

segunda-feira, 27 de março de 2017


Kamasi Washington, trocando a guarda nos portões do Jazz


Kamasi (Foto: Divulgação)

Kamasi (Foto: Divulgação)



Um guarda enorme protege o portão no alto da montanha. Na pequena vila ao pé do morro, os jovens guerreiros treinam intensamente para conseguir derrubar o guarda e assumir o controle da passagem. Porém, um a um, eles vão sendo vencidos a cada tentativa. Na chegada do último, o guarda treme, pressente que a sua hora está próxima. Ele vê que aquele é o guerreiro que lhe poderá vencer, porque traz o bem em seu coração.

Esse argumento de mangá, a história em quadrinhos japonesa, foi um sonho que o saxofonista Kamasi Washington transformou na suíte The Epic. São 172 minutos de música, que se estendem por um cd triplo, gravado com sua superbanda The Next Step, composta por dois tecladistas, dois baixistas, dois bateristas, três sopros, um pianista e uma cantora. Completando o muro sonoro, o suporte de uma orquestra de 32 instrumentos e um coral de 20 vozes.

Kamasi Washington, aos 34 anos, é a nova sensação no mundo do jazz, responsável por situações incomuns nesse universo tão seletivo. Seu disco inusitado foi eleito o álbum do ano pela revista DownBeat, com os votos de críticos de todo o mundo. O músico ganhou ainda mais dois prêmios, neste 64.o ano da revista. Ele foi eleito a estrela em ascendência no jazz e no saxofone. 

Os resultados acabam de ser publicados na edição de agosto da DownBeat, que é a mais importante publicação na área do jazz.

Inusitado, também, é que, além de conquistar os críticos, Kamasi Washington vem conquistando uma legião de fãs composta por jovens, que normalmente se interessariam por outros gêneros musicais. Seus shows são grandes espetáculos que necessitam salas amplas para as apresentações. Neles, inusitadamente, ainda, a plateia dança durante os concertos, o que não é comum mais, no jazz, depois da era do Swing.

O saxofonista Kamasi Washington, é integrante do coletivo West Cost Get Down, que reúne artistas de diferentes gêneros e meios de expressão. Eles têm em comum o fato de haverem crescido na região violenta de South Central, em Los Angeles, e terem frequentado as oficinas que o Movimento Black Arts - o braço cultural do Black Power - ministrava no centro Leinert Park. Ali, além das aulas de arte e música, os jovens negros recebiam lições de cidadania, reforçando o orgulho de sua identidade afro americana.

E uma das leituras que mais influenciaram o jovem Kamais nessa época foi a Autobiografia de Malcom X. Ele conta ter sentido a potência daquelas ideias e identificado que tinha uma responsabilidade a cumprir. Não queria ser parte de um modelo de autodestruição e sim, tornar-se uma força positiva de mudança neste mundo. O pensamento de Malcom X está plasmado em uma das faixas de The EpicMalcom’s Theme.

O West Cost Get Down tem gerado outros nomes que se destacam, igualmente, por sua qualidade e implicaçāo política, entre eles o rapper Kendrick Lamar. Kamasi Washington fez os arranjos de cordas e tocou o saxofone no álbum de Lamar To Pimp a Butterfly. O disco ganhou cinco Grammys na premiação deste ano. A música Alright, de Kendrick Lamar, tornou-se o hino do movimento Black Lives Matter, depois que seu refrão passou a ser cantado nas manifestações em protesto à violência policial contra os negros.

Kamasi Washington se considera um exemplo perfeito dos argumentos apresentados pelo Black Lives Matters. Negro, alto, forte, costumava ser visto na rua como uma ameaça eminente, sendo agredido do nada, apenas por prevenção. O músico relata que depois que começou a usar as batas africanas que veste, junto com a barba e a cabeleira densas, sua figura exótica deixou de assustar as pessoas.

The Epic estaria incluída em um contexto envolvendo outras obras que expressam a condição do negro nos Estados Unidos. Para alguns críticos, Kamasi seria a voz jazz do Black Lives Matter, pois fala do que essas pessoas estão sentido ao ter que lidar com o trauma da violência racial.

O álbum oferece um panorama da história da Black Music americana, desde o gospel, o blues e o jazz, até o rhythm and blues e o funk, com ecos de Marvin Gaye, Curtis Mayfield e Stevie Wonder. Nele estão presentes, ao mesmo tempo, as influências de John Coltrane, especialmente dos discos A Love Supreme e Transition - que escutava com seu pai - e as cordas e coros de Stravinsky, que estudou na Universidade da California – UCLA.

O tema Change of Guards, que abre o disco, é quase uma metáfora do que Kamasi Washington representa, neste momento, para o jazz, o novo que se apresenta para render a antiga tradição. Ele tira o jazz das catedrais e o traz novamente para as ruas, aproximando essa música das plateias que a tinham distante. No link The Epic se pode acessar o disco e escutá-lo na íntegra. No vídeo a seguir temos uma apresentação de Kamasi Washington e The Next Steps na faixa Leroy and Lanisha.

A saga descrita no sonho de Kamasi, que deu origem ao disco, será transformada em uma história em quadrinhos. O roteiro está sendo elaborado pelo músico, junto com desenhistas do coletivo West Coast Get Down.