segunda-feira, 27 de março de 2017


Kamasi Washington, trocando a guarda nos portões do Jazz


Kamasi (Foto: Divulgação)

Kamasi (Foto: Divulgação)



Um guarda enorme protege o portão no alto da montanha. Na pequena vila ao pé do morro, os jovens guerreiros treinam intensamente para conseguir derrubar o guarda e assumir o controle da passagem. Porém, um a um, eles vão sendo vencidos a cada tentativa. Na chegada do último, o guarda treme, pressente que a sua hora está próxima. Ele vê que aquele é o guerreiro que lhe poderá vencer, porque traz o bem em seu coração.

Esse argumento de mangá, a história em quadrinhos japonesa, foi um sonho que o saxofonista Kamasi Washington transformou na suíte The Epic. São 172 minutos de música, que se estendem por um cd triplo, gravado com sua superbanda The Next Step, composta por dois tecladistas, dois baixistas, dois bateristas, três sopros, um pianista e uma cantora. Completando o muro sonoro, o suporte de uma orquestra de 32 instrumentos e um coral de 20 vozes.

Kamasi Washington, aos 34 anos, é a nova sensação no mundo do jazz, responsável por situações incomuns nesse universo tão seletivo. Seu disco inusitado foi eleito o álbum do ano pela revista DownBeat, com os votos de críticos de todo o mundo. O músico ganhou ainda mais dois prêmios, neste 64.o ano da revista. Ele foi eleito a estrela em ascendência no jazz e no saxofone. 

Os resultados acabam de ser publicados na edição de agosto da DownBeat, que é a mais importante publicação na área do jazz.

Inusitado, também, é que, além de conquistar os críticos, Kamasi Washington vem conquistando uma legião de fãs composta por jovens, que normalmente se interessariam por outros gêneros musicais. Seus shows são grandes espetáculos que necessitam salas amplas para as apresentações. Neles, inusitadamente, ainda, a plateia dança durante os concertos, o que não é comum mais, no jazz, depois da era do Swing.

O saxofonista Kamasi Washington, é integrante do coletivo West Cost Get Down, que reúne artistas de diferentes gêneros e meios de expressão. Eles têm em comum o fato de haverem crescido na região violenta de South Central, em Los Angeles, e terem frequentado as oficinas que o Movimento Black Arts - o braço cultural do Black Power - ministrava no centro Leinert Park. Ali, além das aulas de arte e música, os jovens negros recebiam lições de cidadania, reforçando o orgulho de sua identidade afro americana.

E uma das leituras que mais influenciaram o jovem Kamais nessa época foi a Autobiografia de Malcom X. Ele conta ter sentido a potência daquelas ideias e identificado que tinha uma responsabilidade a cumprir. Não queria ser parte de um modelo de autodestruição e sim, tornar-se uma força positiva de mudança neste mundo. O pensamento de Malcom X está plasmado em uma das faixas de The EpicMalcom’s Theme.

O West Cost Get Down tem gerado outros nomes que se destacam, igualmente, por sua qualidade e implicaçāo política, entre eles o rapper Kendrick Lamar. Kamasi Washington fez os arranjos de cordas e tocou o saxofone no álbum de Lamar To Pimp a Butterfly. O disco ganhou cinco Grammys na premiação deste ano. A música Alright, de Kendrick Lamar, tornou-se o hino do movimento Black Lives Matter, depois que seu refrão passou a ser cantado nas manifestações em protesto à violência policial contra os negros.

Kamasi Washington se considera um exemplo perfeito dos argumentos apresentados pelo Black Lives Matters. Negro, alto, forte, costumava ser visto na rua como uma ameaça eminente, sendo agredido do nada, apenas por prevenção. O músico relata que depois que começou a usar as batas africanas que veste, junto com a barba e a cabeleira densas, sua figura exótica deixou de assustar as pessoas.

The Epic estaria incluída em um contexto envolvendo outras obras que expressam a condição do negro nos Estados Unidos. Para alguns críticos, Kamasi seria a voz jazz do Black Lives Matter, pois fala do que essas pessoas estão sentido ao ter que lidar com o trauma da violência racial.

O álbum oferece um panorama da história da Black Music americana, desde o gospel, o blues e o jazz, até o rhythm and blues e o funk, com ecos de Marvin Gaye, Curtis Mayfield e Stevie Wonder. Nele estão presentes, ao mesmo tempo, as influências de John Coltrane, especialmente dos discos A Love Supreme e Transition - que escutava com seu pai - e as cordas e coros de Stravinsky, que estudou na Universidade da California – UCLA.

O tema Change of Guards, que abre o disco, é quase uma metáfora do que Kamasi Washington representa, neste momento, para o jazz, o novo que se apresenta para render a antiga tradição. Ele tira o jazz das catedrais e o traz novamente para as ruas, aproximando essa música das plateias que a tinham distante. No link The Epic se pode acessar o disco e escutá-lo na íntegra. No vídeo a seguir temos uma apresentação de Kamasi Washington e The Next Steps na faixa Leroy and Lanisha.

A saga descrita no sonho de Kamasi, que deu origem ao disco, será transformada em uma história em quadrinhos. O roteiro está sendo elaborado pelo músico, junto com desenhistas do coletivo West Coast Get Down.


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